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Há uma caravela em alto mar. As ondas estão altas, a embarcação balança com leve violência. A água batendo contra o casco e as madeiras rangendo são os únicos barulhos que acabam com o silêncio enlouquecedor do meio do oceano. O vento está soprando e as velas estão içadas. De repente surgem nove piratas correndo sobre o convés, todos sujos, barbudos e segurando suas canecas de rum, batendo palmas com força e cantando entusiasmados uma velha canção, que diz algo mais ou menos assim: "a vida é cruel e foge veloz / ela vem lentamente calar nossa voz / cega nossos olhos, não tem pena de nós / ela quer que nós juntos fiquemos tão sós". A empolgação na música é tanta que alguns se descuidam e deixam as canecas cair; elas saem rolando sobre a madeira e mais um pouco de rum é desperdiçado (e o pior é que a essas alturas, depois de tantos meses viajando, já não há mais quase nada de bebida estocada no porão). 

Está criada acima a atmosfera básica do excelente disco de estreia da Confraria da Costa, homônimo, lançado ainda no começo de 2010. No álbum que é o debut da banda mais pirata de Curitiba brilham muito os ritmos agitados à la leste europeu, que de maneira inusitada acabam muito bem combinados com o tema marinheiro para formar uma espécie de "piratas dos balcãs". Nesses momentos mais rápidos você quase consegue ver os andrajosos do mar dançando e gritando "HEI!" ao mesmo tempo em que se equilibram para não cair nos solavancos das ondas. 

Essa sabedoria suja da vida nos oceanos parece muito bem reproduzida em letras que por várias vezes são perspicazes na demonstração da superioridade adquirida pela larga experiência (ex: "eu já esqueci mais do que você um dia vai saber"), ou mesmo na transformação do cenário náutico em metáfora para relacionamentos cotidianos, amorosos ou não ("quem te deixou nesse mastro à deriva sabia nada de navegação"). 

Mas antes dessas reflexões, o som da Confraria da Costa é mais para ser dançado euforicamente em bares pequenos e escuros, enquanto você e desconhecidos ao seu redor se abraçam e gritam "hei! hei!" freneticamente sob a chuva dos copões de chope que é derramado por todos os lados. As faixas "Homo tudo sapiens", "Coisas piores acontecem no mar" e "És cadavérico!" (que você ouviu no último podcast defenestrado) jogam o seu ânimo lá em cima e cumprem bem essa função festiva.

19/07/10 - Hei! Hei! Oras, é óbvio, nem tudo são bons ventos: as feridas que o escorbuto não deixa cicatrizar doem e incomodam, há sujeira demais por todo o barco, a comida sumiu dos estoques faz tempo. "Confidencial", "Embaixo da mesa" e "Réquiem" são as três únicas pontadas de dor e isolamento do álbum. Passar tantos meses seguidos no mar a ponto de perder qualquer esperança de encontrar terra firme só pode ser algo incômodo, como essas manchas e verrugas que nunca teriam aparecido em sua pele se você tivesse ficado no conforto de sua casa. Mas essa que é a viagem do álbum. 

"Confraria da Costa" é um disco ótimo. Pelo caráter sujo, pirata e balcânico, vale não só ouvi-lo de cabo a rabo algumas boas vezes, mas também presenciar esses piratas em ação; um show da Confraria (que na verdade já tem mais de dez anos de estrada e chamava-se, antes, de Gato Preto) acaba sendo item obrigatório no currículo de um algum curitibano apreciador de showzinhos legais. 

Você consegue achar facinho o disco inteiro pra baixar. Dá uma procurada aí no four shared. 

E eu na verdade já deveria ter falado sobre essa bolacha aqui faz muito tempo. De qualquer jeito, está atrasado mas está aí. 

HEI! 

por Felipe Gollnick